RELATO DE UMA INTENSA EXPERIÊNCIA

– Professora, que horror ter que falar da gente… Coisa mais difícil…

– Eu nunca parei para pensar sobre mim mesmo…

– Eu não sei o que escrever sobre mim…

– É muita informação para colocar em um só texto…

Esses foram alguns comentários que eu escutei ao propor que os alunos elaborassem textos do gênero autorretrato literário. Senti, naquele momento, que a tarefa não seria fácil para, talvez, a maioria dos alunos.

Insisti, porém, e o resultado foi muito positivo, não só pelos belos textos produzidos, mas também pela possibilidade de reflexão e autoconhecimento que se construiu com o desenrolar da atividade.

A proposta de redação foi indicada no início do ano letivo. E isso não foi por acaso: o público ao qual a tarefa se dirigiu é a primeira série do curso de Mecânica e uma turma do curso de Química. Esses alunos, recém-chegados à Fundação Liberato, muitos estreando na adolescência, tiveram a chance de parar e pensar sobre si mesmos, a fim de que pudessem se construir também como alunos de seus cursos.

A atividade completa envolveu o estudo do gênero textual autorretrato, assim como a sua versão literária. Iniciando-se pela análise de autorretratos não verbais, foi possível ver que há diferentes maneiras de se falar sobre si mesmo. O autorretrato é fruto de uma profunda percepção de si, mas também envolve as questões subjetivas presentes no momento da escrita, ou seja, uma mesma pessoa pode escrever ou pintar sobre si mesma de um jeito em determinado dia; mas em outro, depois de uma grande frustração, por exemplo, talvez não se reconheça em sua obra.

As orientações para a produção do texto envolviam algumas diretrizes sobre os aspectos que os alunos poderiam contemplar em seus autorretratos: aspectos físicos, traços da personalidade, lembranças, traumas, medos, gostos. Indicar esses possíveis caminhos tranquilizou a turma de alunos que tinha uma infinidade de características para apresentar na redação e também sinalizou uma saída para aqueles que não sabiam sobre o que falar. Posso afirmar agora, contudo, que a atividade de escrita de um autorretrato realmente fez os alunos se olharem com outros olhos. Talvez tenha feito se olharem por uma primeira vez. E, claro, o resultado disso só pode ser intenso, muito intenso.

Antes de falar dessa intensidade toda, porém, é preciso comentar a dificuldade encontrada ao trabalhar a linguagem literária. De acordo com Abaurre e Pontara (2005) , “O uso conotativo da linguagem faz com que as palavras, ao aparecerem em contextos inesperados ou imprevisíveis, ganhem novos significados e produzam interessantes efeitos de sentido” (p.21).

A arte recria a realidade. E a literatura faz isso através da palavra. Relacionar-se com os elementos da realidade, dando outro sentido ao que percebemos: isso é fazer literatura, ou seja, fazer arte com a palavra, dizer de forma inovadora, criar novos significados para o que já existe, ampliar as possibilidades de adjetivação, explorar a metáfora enquanto matéria-prima da caracterização. O uso privilegiado da conotação até mesmo para se referir àquilo que já é tão comum: a palavra sol, por exemplo, pode indicar vida, alegria, esperança, calor.

São muitos os elementos que caracterizam a linguagem literária e os alunos não estavam, em sua maioria, apropriados de suas possibilidades, estando presos aos fatos, às reais observações e com o vocabulário, muitas vezes, bastante limitado. Dizer o que viam ou o que sentiam sem cair na mesmice e na obviedade foi um desafio aceito pela maioria e uma experiência muito significativa na produção de alguns textos.

Para finalizar este relato de experiência, divido com os leitores a intensidade dos textos no que se refere à intimidade e à confiança a mim dirigidas e, também, em vários autorretratos, à intensidade na literariedade. Após o percurso percorrido neste projeto, que envolveu o estudo do gênero textual, o estudo da linguagem literária e a leitura de diversos exemplos de autorretratos, o resultado foi muito positivo. Entendo que a apropriação de uma linguagem com recursos de estilo exige o contato diário e sistemático com textos dessa categoria. Um aluno com hábito de leitura tem mais facilidade de empregar a linguagem literária em suas produções.

Os quatro exemplos de autorretrato literário expostos a seguir são um convite para entender o quanto foi possível avançar no emprego da linguagem literária e na análise pessoal de si próprio. O momento de avaliação dessas produções foi, para mim, um grande aprendizado: o que conhecemos do outro é apenas uma parte do outro; não temos como dimensionar o que está por trás de cada rosto, de cada reação ou modo de lidar com os problemas do cotidiano. Somos complexos, intensos e apaixonantes. Boa leitura!

Os autores dos textos não estão identificados pelo fato de apresentarem informações de cunho pessoal.

 

Texto 1

UM MAR

Nasci em uma capital movimentada e repleta de sujeitos cheios de histórias para contar. Cada indivíduo é formado por sua história, influenciado por pessoas, lugares, músicas e filmes.

Por minha vez, vim ao mundo urbano imediatamente, o que permitiu que fosse uma pessoa mais ativa. Ativa em todas as áreas, nos estudos, em relações familiares, nos sentimentos e até mesmo no senso crítico musical.
Meu emocional está em constante dívida com o demonstrar. Por guardar tantos sentimentos, acabo passando-os para o papel e preservando-os em uma gaveta. Desde livros até as mais simples poesias.

Sou quem nada em amizades novas e antigas e também sou a que tem companhia para se afogar no amor todos os dias. Guardo momentos e esqueço datas. Coleciono palavras, mas sempre apreciei o silêncio gritante que olhares e toques podem provocar.

Desde pequena, lido com a vida me perdendo e me encontrando. Algumas vezes me perdendo em brigas familiares e muitas vezes me encontrando em um único abraço. Algumas vezes me perdendo em poesias e outras vezes me encontrando em meus próprios poemas.

Me descrever é muito mais do que falar que tenho um metro e sessenta de altura, olhos castanhos, pele branca e o cabelo com alguns tons de loiro. Me descrever é mergulhar em um mar repleto de sentimentos, imagens e palavras. Me descrever é, consequentemente, descrever outra pessoa por sua frequente presença em minhas linhas, que, logo, passaram a fazer parte de mim, permitindo que, todos os dias, eu aprenda mais sobre a pessoa que fui, sou e serei.

Texto 2

AUTORRETRATO DA ALMA

Negros como meus olhos são os meus cabelos. A pele é clara como a alma. Sempre tentando não perder a calma.

Praticante dos frutos do Espírito, crente na bondade, minha vida é guiada por um Deus que muitos dizem não ser de verdade.

Nem sempre sorrindo. Mas sempre feliz e grata pela vida que tenho. Pois sei que o maior presente eu já ganhei, e mesmo sem merecer tenho o amor do rei.

Faço tempestade em copo d’água, causo enchente no deserto, morro de amores, levo tudo ao pé da letra e choro por tudo. Eu gosto de intensidade e de mergulhar no mais profundo. Eu que antes me afogava hoje ando sobre as águas.

Tenho uns costumes estranhos. Demonstro afeto com tapas, apertos, abraços, beijos, sorrisos, palavras, mostrando músicas e imagens.

Sou simples, sou única, diferente das outras. Mas acima de muitas coisas, eu não sou desse mundo.

 

Texto 3

EU, DE MIM A MESMA

Escrever um autorretrato é uma tarefa árdua, que exige muita atenção para que seja executada corretamente, pois, comumente, acabo por me perder em terceiros. E eu, achando-me tão desinteressante, fujo do empecilho que é escrever sobre mim mesma. Entretanto, apesar da sutil timidez e insegurança, gosto de me conhecer e descobrir, entendendo-me. Ainda, por ser ligeiramente romântica, admiro o mundo em sua plenitude e possuo uma forte ligação à natureza – o que me torna, também, muito curiosa.

Eu, tão curiosa, que, aliás, já causei muito incômodo a muitos com minhas tantas e, por ora, profundas perguntas. Todo esse entusiasmo, por fim, acabou por me levar aos mais diversos gostos, às mais diversas reflexões e às mais diversas pessoas. Porém, embora diversas, não foram tantas as fundamentais para a minha formação, tanto intelectual como emocional, mas as que foram compuseram-me de tal forma que, hoje, sou cada uma delas. A convivência e a comunicação, como a filosofia e a arte, são, para mim, muito importantes e, em função disso, valorizo muito meu meio de convívio e toda a sua estrutura.

Como sociedade, admito a importância do ser humano e, por isso, tenho um grande prazer em estudá-lo de todas as formas, bem como a natureza e o universo. Assumo, também, o meu imenso prazer em aventuras e contato social. Satisfaz-me muito sair, ou apenas relaxar, com meu namorado e meus amigos. Ademais, minha louca vontade de comer tão variados alimentos é um tanto quanto singular, causando uma grande surpresa ao me declarar vegana aos leigos. Por fim, como indivíduo político, nunca temi me manifestar. Como ser vivo, nunca parei de me movimentar – dançando. Como mulher, nunca ousei me reprimir. E, como jovem, nunca deixei de amar.

Pretendo, sempre, sentir saudades do que fui, mas almejar um futuro melhor, “caminho em frente pra sentir saudade”. Minha maior vontade, hoje, é seguir uma vida acadêmica, mas nunca isolada. Como já fora dito, valorizo muito a comunicação e, por isso, pretendo ser professora. Desejo, ainda, executar um grande trabalho político e social, da melhor forma que me convir e da principal forma que a sociedade precisar.

 

Texto 4

ANOMALIA DIALÉTICA

Um nariz redondo que deixou de crescer há sete anos. Dois olhos escuros que ficaram míopes depois de ver tantos filmes. Uma boca meio rosa, que às vezes tenta ler Drummond de Andrade em voz alta, mas logo se cansa. Esses são alguns dos traços que compõem meu rosto, normalmente sério, sem sorrisos; mais por ineficiência do que por falta de motivos. Que nem são muitos, também. Introspectivo. Talvez eu sofra de crise existencialista escalafobética adolescente aguda, que torna a vítima um niilista que acredita em muitas coisas. Doença séria, muito pouco combatida. E desacreditada.

Perceba o leitor que quanto mais me aproximo daquilo que revela minha essência – ideias, gostos etc. – começo com rodeios. Invento uma piada ali, uma digressão desnecessária acolá. Tudo porque não quero passar da linha tênue do pedantismo. Para mim, é muito mais fácil dizer que me acho feio do que falar que tenho como ídolo Thomas Pynchon. Ou que Einstürzende Neubauten é uma de minhas bandas preferidas. Prefiro me rebaixar a ter que admitir minha “intelectualidade”. E daí que tenho um pôster do Roberto Bolaño no meu quarto?, se eu nem sei andar de bicicleta? Um pensamento próximo disso é o que sempre me atinge.

Há outra faceta muito significativa em mim: a do torcedor de futebol. Até o começo do ano passado meu interesse pelo esporte do povo era quase nulo. Algo que, de uma hora para outra, entrou drasticamente na minha vida. Sem nenhuma explicação. “Caramba, acho que vou ver um jogo do Grêmio”. E depois disso veio o vício. Em suma: acabei criando uma paixão quase que religiosa pelo meu time.

Tenho noção de que, para minha idade, sou uma anomalia dialética. Acabei desenvolvendo um interesse cultural muito cedo. Mas, ao externo, escondo essas coisas. Mantenho toda essa efervescência de jazz, nouvelle vague, marxismo e pós-modernismo dentro da cachola. E, consequentemente, me mantenho na normalidade. Às vezes chego até a pensar que me encaixo no perfil de artista e intelectual renomado. Algo meio prepotente de minha parte. Mas eu bem que gostaria, admito.

 

Iris Lisboa Professora de Língua Portuguesa e Literatura Fundação Liberato

Iris Lisboa
Professora de Língua Portuguesa e Literatura
Fundação Liberato

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *