O Theatro São Pedro foi palco de um excelente evento e de uma grande comemoração nos dias 21, 22 e 23 de julho: a encenação de um clássico da dramaturgia nacional, Doroteia, do sempre atual e polêmico Nelson Rodrigues, em temporada que marca os 60 anos de carreira da atriz Rosamaria Murtinho.
Doroteia apresenta, originalmente, apenas personagens femininas. A ausência de figuras masculinas representa o fim do patriarcado, e as botas desabotoadas, representação do noivo da personagem Das Dores, simbolizam o esvaziamento do poder masculino. Nesse contexto de ausência da dominação masculina, mulheres tornam-se algozes repressoras de outras mulheres. A cruel matriarca Dona Flávia, interpretada por Rosamaria Murtinho, reprime qualquer manifestação de instinto ou desejo sexual feminino. Ela ocupa o papel de controle num sistema matriarcal similar ao opressivo poder patriarcal, e chega a esganar e matar suas duas irmãs, Maura e Carmelita, quando elas manifestam desejo simbólico pela presença masculina.
Todas as mulheres da família casam com maridos invisíveis e afirmam sentir uma náusea nupcial. A alegada invisibilidade e o enjoo são formas de negação e de sufocamento do desejo sexual. Das Dores, a filha de Dona Flávia, cresce na ignorância de que nascera morta. É um “aborto vivo” e, ao final, é o elemento transgressor da ordem imposta, pois “vê” o noivo, não sente a “náusea”, recusa sua condição de morta e retorna ao útero materno por querer renascer, viva e com desejos. Todas as demais personagens também parecem espectros que precisam de um corpo. A exceção é a prima Doroteia, interpretada por Letícia Spiller, ex-prostituta que volta para esse lar e tenta se redimir através do castigo físico, da automutilação. O corpo, fonte da beleza e do prazer, precisava ser aniquilado.
Doroteia é uma proposta dramática experimental em que Nelson Rodrigues representa o irreal que chega às raias do absurdo. A peça é provocação e enigma, radicalização mítica em um texto esfinge que ameaça agressivamente: “decifrem-me, ou os devoro”. Obra de vanguarda em 1949, apresenta-se como farsa, comédia, denúncia, tragédia, non sense. Nelson Rodrigues escreveu uma obra inclassificável, produziu um drama indecifrável e incompreensível que, após 68 anos de sua estreia, ressurge, dirigida por Jorge Farjalla, como montagem atualizada que se inscreve como mais um momento inesquecível que marca a história do Theatro São Pedro.