crônica: cotidiano

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Todas as manhãs, bem cedo, eles entravam pela grande porta envidraçada da Biblioteca. Uma fila de zumbizinhos sonolentos rumava para dentro, cabeça baixa ou olhos no horizonte. Então, como se uma varinha mágica fosse sacudida na frente deles e quebrasse o (des)encantamento, aqueles jovens eram sequestrados da indiferença com que chegavam.
Era sabido que eles levavam para lá muito mais do que precisavam para seus estudos. Suas mochilas sempre tão pesadas estavam recheadas de livros, sonhos e histórias. Alguns jovens eram sobreviventes das “mochilas invisíveis”, abarrotadas com o peso das responsabilidades que carregavam. Cuidavam de parentes idosos ou de irmãos mais novos. Compartilhavam o medo pelas doenças ou calosidades que apareciam em algum familiar, enquanto viviam o purgatório da espera pelo longínquo dia da consulta.
Descarregavam de suas bagagens – junto com a esperança de mudar de vida e com a dedicação aos estudos – a angústia de pais que estavam desempregados ou impedidos de trabalhar devido a enfermidades graves. E, então, davam voz a suas abafadas angústias: “Como vamos sobreviver? E minha irmãzinha pequena?”. Às vezes, eles nem se davam conta de que transportavam a família inteira em suas costas, junto com cadernos e canetas.
Mas, como quem puxasse um fio para tecer a vida, qualquer encontro ajudava aqueles jovens a comporem a trama de seu tecido. Buscadores, em permanente autodescoberta, cruzavam aquela porta e não tardavam em alinhavar pensamentos, reflexões, filosofias.
Uma dessas jovens, escultoras de si própria, declara subitamente: – “Tenho apreço pelos números ímpares!”. E recebe a provocação: – “Quem sabe os números ímpares não são aqueles que não estão fechados, que estão abertos a novas composições, que algo lhes venha a acrescentar…” A garota inteligente e sempre em busca se extasia… Talvez fosse dela que se tratasse e não dos números ímpares!
Havia os que experimentavam as emoções e as dores de seus (des)afetos e recitavam com voz embargada, seus escritos feitos para amores mal correspondidos, enquanto tentavam conter teimosas pocinhas prontas a escorregarem de seus olhinhos.
Outros jovens, enfáticos tal qual militantes políticos em época de campanha, liam trechos de livros com seus poemas favoritos, enquanto tentavam convencer a quem os escutava, de que: “Tenho certeza de que este é o melhor autor de poesia norte-americana!” Suas opiniões assertivas e cheias de convicções, pareciam andar de mãos dadas com a dor das dúvidas que lhes perpassam contante, como é comum nesta etapa da vida: incerteza de quem eram naquele instante e incerteza do que serão ainda, algum dia.
Aquela porta de vidro da Biblioteca, quando aberta todas as manhãs, abria disponibilidade aos debutantes da existência. Eles sentiam que eram acolhidos com o gosto de quem recebe presente raro. E tinham a certeza de que eram reconhecidos singularmente, em seu sempre igual e também em sua desparecência. Aquele ingresso permitia o compartilhar de vidas daqueles jovens e suas belas, tristes, duras e lindas histórias.
E assim, dia a dia, eles entram lá e buscam ferramentas que lhes possibilitem acrescentar uma confirmação ou um novo argumento aos seus mundos. Tecitura essa, que os habilitava, enfim, a continuar construindo seu pensar autônomo e seguir realizando seu fabuloso trabalho de artesãos de si próprios.

Carla Casagrande Bibliotecária Fundação Liberato

Carla Casagrande
Bibliotecária
Fundação Liberato

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