Quando peguei no sono naquela noite, acordei no lugar de costume: uma sala vazia e escura, com uma iluminação baixa em pontos selecionados. Não sabia por que minha mente insistia em me levar até lá, mas havia começado naquela semana e eu não via nenhuma razão aparente para sonhar com aquilo. Até que eu avistei alguém.
Em um canto que eu parecia nunca ter visto, havia uma grande janela. E, escorado nessa janela, olhando para o lado de fora, havia um garoto. Pelo tamanho e pelas roupas parecia ser apenas uma criança, e eu não tinha ideia do que aquela criança fazia no meu sonho. Aproximei–me.
Como eu nunca tinha sido muito bom em interagir com crianças, pensei em simplesmente chegar e me apoiar na janela também. Olhar para o lado de fora, ver algo (se tivesse algo para ver) e fazer algum comentário, ou talvez esperar que ele perguntasse quem eu era. Olhando para fora da janela, pude ver minha cama, as roupas jogadas pelo chão, a cabeceira com alguns livros que eu não tinha coragem de ler e a coleção de discos na prateleira ao lado. Me vi deitado de bruços, de boca aberta quase babando no travesseiro, como eu infelizmente sempre fazia.
Do outro lado da janela estava o meu quarto naquela noite, e eu me vi dormindo, provavelmente sonhando com aquela sala escura. Enquanto tentava assimilar aquilo na minha cabeça, a criança que estava ao meu lado perguntou:
– Por que você não fecha a boca para dormir?
Momentaneamente tinha me esquecido de que o garoto estava ali e, ao me virar para responder, tive o segundo choque daquele sonho.
O garoto era eu, mas não eu naquele momento, e, sim, eu há uns 6 anos atrás.
Com 11 ou 12 anos de idade, uma camiseta de uma banda que eu nem ouvia mais, o cabelo começando a crescer e o rosto criando as primeiras espinhas. Meu “eu de 11 anos” vestia uma camisa xadrez vermelha que sempre fora minha preferida, até que eu cresci e ela ficou pequena demais para mim. Se bem que, olhando desse ângulo, a camisa nem era tão bonita assim.
– O que você está fazendo aqui? – perguntei um pouco assustado – Ou melhor, por que você sou eu e por que está me vendo dormir?
– Você nunca ouviu aqueles clichês? – respondeu com um pouco de preguiça na voz – “O que o seu eu de 11 anos diria para você se te visse agora? “. Então, eu te vejo agora. Você está dormindo ali embaixo.
– Espera, esse sonho é realmente tão bobo assim? Estou me encontrando comigo mesmo no passado, vendo minhas próprias atitudes – dei uma risadinha. Quer que eu reflita sobre as coisas que eu faço ou algo assim?
– Não, não precisa. Eu só estou olhando – e se virou novamente.
Resolvi olhar também para a janela e vi que, lá embaixo, eu já não estava mais dormindo. Consegui ver meus olhos abrindo, meu corpo se espreguiçando enquanto eu acendia a luz. Observei atentamente os aproximados cinco minutos em que mexi no celular, debaixo das cobertas, sem ter coragem de levantar da cama. Quando me vi levantando e saindo pela porta, provavelmente para escovar os dentes, percebi que estava olhando por tempo demais.
Por que o sonho não havia sumido quando eu acordei? Por que eu continuava ali naquela sala escura e não estava conscientemente “lá embaixo” acordado e procurando minhas pantufas? Ou, então, aquilo ainda fazia parte do sonho?
– Ei, por que você parou de usar essa camisa? – chamou–me o garoto que continuava do meu lado, apontando para a camisa xadrez vermelha que usava.
– Ah – respondi, meio confuso – ela ficou muito pequena em mim.
– Mas por que não comprou outra igual? Que fosse maior.
– Eu não lembro bem, eu acho que eu queria variar um pouco… sabe, eu, quer dizer, a gente, bom… essa camisa não tinha descanso, né? – disse, rindo.
– Por que ela é incrível, obviamente – disse o meu eu de 11 anos, pegando a gola da camisa vermelha e levando até o rosto, cheirando–a com aprovação – sabe, eu poderia usar isso aqui para sempre!
Depois de esboçar um sorriso, resolvi perguntar o que estava acontecendo.
– Você lembra como chegou aqui? Como achou essa janela?
– Hm… – balbuciou, pensativo – faz muito tempo, tipo, muito tempo mesmo. Eu não lembro bem como aconteceu. No começo eu não via nada, sabe? Era tudo escuro. A janela só foi aparecer depois de um tempo.
– E você fica me vendo por essa janela desde então? Até aquela vez que eu…
– Sim, sim – disse, com desgosto – não fale daquele dia, foi nojento.
– Como assim nojento? Foi incrível – disse para ele, esperando aprovação.
– Não sei se ela achou o mesmo…
– Ah… tá, mas, espera, por que eu estou aqui junto com você? Eu não quero ficar me vendo por essa janela, eu quero ir lá embaixo, viver a minha vida.
Nesse momento, o garoto olhou para baixo, receoso. Parecia juntar coragem.
– Talvez… – disse ele, baixinho – talvez não seja mais a sua vida, exatamente.
– Como assim? Aquele lá embaixo sou eu!
– Me responde, por que você parou de usar essa camisa xadrez? – insistiu ele.
– O quê? Eu já te respondi isso, ela ficou muito pequena em mim. O que isso tem a ver com a história?
– Não, me responde direito – disse o garoto, agora olhando nos meus olhos – você usava isso todo dia e para qualquer situação, por que parou?
Respirei fundo, pensei naqueles anos, pensei no jeito como eu me vestia e no fato de aquela camisa estar sempre comigo. Naquele momento, lembrei–me de como isso me prendeu por certo tempo, de como eu custei a me desapegar. Ela já não servia em mim há meses, mas eu ainda usava, porque eu não queria usar outra coisa. Aquilo me trazia um sentimento de conforto que eu tinha medo de perder. Quando eu a soquei no fundo do guarda–roupa, aos 11 anos, eu me senti uma pessoa mais livre.
Disse isso para o garoto, que agora agarrava a camisa mais forte do que nunca.
– É por isso que eu estou aqui – disse ele – porque eu não existo mais na sua vida. Desde os 11 anos, quando você decidiu mudar o jeito de se vestir, eu apareci aqui, porque você não precisava mais de mim. Você não só jogou a camisa fora, você se desapegou de muita coisa que antes fazia parte de você.
– Mas… mas isso não é ruim.
– Não, isso é ótimo. Você teve que mudar, e eu até entendo isso. Você é muito diferente de quando tinha 11 anos, e eu tive que ir embora para que isso acontecesse. Nem todo mundo entende tão bem.
– Todo mundo quem? – perguntei a ele.
– Bom, olhe ao seu redor. Olhe bem.
Virei–me para ver a sala escura, que já não me parecia mais tão escura quanto antes. Vendo bem, tinha muita gente naquela sala. Várias versões de mim mesmo, várias janelas. Cada “eu” refletia um gosto musical, um jeito de pensar sobre a vida, de conversar com as garotas. Sempre que eu mudava, eu levava alguém ali para cima. Alguém que já não era mais parte de mim.
Alguns olhavam pela janela, ansiosos. Alguns gritavam, tentando fazer com que isso chegasse até lá embaixo. Outros só ignoravam a janela e sentavam no chão.
– Eu mudei tanto assim desde os 11 anos? – perguntei.
– Você nem imagina quanto.
– Mas então – pensei em voz alta – se eu estou aqui em cima…
– Sim. “Ele” mudou de novo. Provavelmente hoje ele tenha decidido fazer algo que você, daqui de cima, nunca pensaria em fazer… Eu espero que você entenda isso.
Nesse momento, pude ver lá embaixo, no meu quarto, a versão mais atual de mim voltando para a cama e procurando pelo celular.
– Você acha que ele vai fazer tudo certo agora? – perguntei para o garoto, que olhava novamente para baixo, junto comigo.
– Provavelmente não – soltou uma risada pequena – mas vai ficar tudo bem.
Eu ri junto, e nós dois ficamos a olhar para a janela.
Eduardo Matheus Palini
Aluno do Curso Técnico de Eletrotécnica
Fundação Liberato
Primeiro lugar
Categoria Conto
Liberarte 2018