Em fevereiro de 2011, faleceu em Porto Alegre o escritor Moacyr Scliar. Minha maneira de homenagear um dos escritores que mais alimentou minha imaginação e que sempre se disponibilizou a conversar com jovens e leitores apaixonados, foi resgatar um antigo texto que escrevi há mais de 20 anos. Era quase fim da década de 80. O ano devia ser 87 ou 88. O Muro de Berlim ainda estava em pé. Cursava o Mestrado em História do Brasil, na PUC. E para a disciplina de Antropologia escrevi um trabalho que agora faço uma síntese. Não modifiquei a estrutura e o vocabulário usado na época. Preservei o original.
A ATUALIDADE DO CENTAURO
Quando falamos em vida humana, também nos referimos ao que foi produzido pelos humanos. Entre tantas coisas realizadas de maneira material ou imaterial, a mitologia sempre atrai olhares. Constituiu uma fonte inesgotável de inspiração para escritores e artistas em geral. E ainda povoa a imaginação de muitas pessoas que explicam os acontecimentos da vida usando seres mitológicos e suas histórias.
Observe os desenhos animados feitos para crianças e jovens, ali podemos ver como transmitimos brincando nossas explicações e interpretações. Mitos existem desde o inicio da civilização. Só para lembrar que um dos mitos mais repetidos é justamente sobre o surgimento da humanidade. Em todos os povos há um mito explicando essa questão.
Os mitos são como manifestações interpretativas da realidade para explicar, justificar ou, simplesmente, modificar algum comportamento ou visão. São relatos representativos da realidade e utiliza-se de simbologias para traduzir o pensamento coletivo.
Os mitos existem sem, necessariamente, uma lógica no seu desenvolvimento. Ou melhor, o mito tem sua própria lógica. Ser mito já é uma verdade.
Assim, como as verdades representam-se como eternas, o mito assume essa mesma postura. Nessa relação o que o mito simboliza torna-se um valor absoluto, na medida em que há uma explicação mágica para o fenômeno que irá explicar. Na relação com a realidade os mitos renovam-se e atualizam-se em linguagem e em fantasia. E podemos ainda afirmar que enquanto houver perguntas e questionamentos haverá mitos. Afinal, eles também servem para acalmar corações enquanto não temos uma resposta que satisfaça nossas inquietações.
É com a intenção de desvendar as manifestações mitológicas atuais que nos propomos refletir sobre o livro “O Centauro no Jardim”, de Moacyr Scliar.
O autor usa o mito do centauro, como simbologia da diferença entre indivíduos que não se enquadram nos parâmetros ditos “normais”. É a história de um centauro. Um centauro que nasce no interior do Rio Grande do Sul, numa família de imigrantes judeus que vieram ao Brasil, comovidos pelas promessas do Barão Hisrch que, dizia ser o Rio Grande do Sul, a terra prometida, tão desejada pela família.
A família vive do trabalho na terra. Nascem 3 filhos ditos normais e no nascimento do quarto filho acontece algo inesperado. O parto é muito difícil e mãe sofre muito. A parteira tenta ajudar puxando o filho. A criança estava em má posição no útero e em vez de descer a cabeça, descem primeiro as patas. Nasce um centauro: metade homem, metade cavalo.
Após o parto, a mãe entra em uma longa depressão. Fica muito tempo sem falar, sem comer e imóvel. Recuperada do trauma, a família começa a viver em função do centauro. Dão-lhe o nome de Guedali. O tempo passa e ele cresce na fazenda. Durante o dia vive escondido no porão e a noite sai pelo campo galopando, galopando e galopando.
Guedali não tem amigos. Um dia, em um de seus passeios, encontra um indiozinho. E cria a fantasia de que ele é seu amigo. Mas o indiozinho nunca mais aparece. Para compensar a solidão o centauro começa a tocar violino e a ler muito.
A família, com medo que os vizinhos descubram o centauro, resolve mudar-se para Porto Alegre. Na nova casa, através de um telescópio que ganha de seu pai, ele começa a observar o mundo ao seu redor. Logo vê uma moça sob o sol.
Cotidianamente a vê.
E o inevitável acontece.
Apaixona-se.
Um dia a vê com outro homem. Frustrado, o centauro foge de casa. Corre pelo Rio Grande a procura do sul.
“Passa fome, tem de roubar para comer. Por fim consegue um emprego num circo” (Scliar) É o novo sucesso do circo. Nesse ambiente, envolve-se com a domadora do circo até ela descobrir que ele é realmente um centauro (até então todos pensavam que se tratava de uma fantasia).
Ela apavora-se e ele apavorado foge.
Novamente na estrada, ruma para a fronteira. Encontra um rancho deserto numa fazenda. Descansa e dorme. Quando acorda ouve um tropel de cavalos. Galope nervoso. Sai do rancho e depara-se com uma centaura fugindo de um fazendeiro. Ele luta e mata o fazendeiro, tudo para salvar a centaura.
Desse dia em diante os dois semelhantes começam uma vida em comum (felizes) na fazenda em que ela vivia. Um dia, descobrem que no norte da África, no Marrocos há um médico capaz de torná-los totalmente humanos. Trocam muita correspondência. Marcam a esperada operação e viajam.
Na clínica, o médico fica assombrado porque jamais tinha visto algo igual. Mas promete operá-los. A operação é um sucesso. Após a recuperação ganham roupas especiais (calças que impedem a curiosidade de alguma criança) e botas especialmente feitas para que os cascos comecem a degenerar naturalmente.
Quando voltam do Marrocos casam-se ao costume dos judeus. São anos de intensa felicidade. Tita, a ex-centaura, engravida. São nove meses cobertos de muita tensão e medo pelo incerto que irá nascer. Como compensação divina pelo que viveram nascem gêmeos. Gêmeos “normais”. O alívio é imediato.
Passa o tempo, os gêmeos crescem. Com o novo cotidiano os ex-centauros começam a sentir falta dos tempos em que galopavam livres pelos campos. Do tempo em que eram diferentes dos seres totalmente humanos. Nesse tempo não tinham a correria dos escritórios, a convivência com a mentira e a hipocrisia, a luta pelo dinheiro, o stress e a depressão, as brigas e desavenças entre si, enfim, viviam seu tempo para galoparem e serem felizes. Totalmente felizes.
Um dia Guedali encontra Tita com um amante centauro. Nesse dia, Guedali foge para o Marrocos a procura de nova operação que o torne novamente um centauro. “Quero voltar a ser centauro” (Scliar). Ser diferente.
Essa é a história dos seres diferentes, daqueles que, como nos referimos anteriormente, não se enquadram nos parâmetros chamados normais. Seja por apresentarem diferenças físicas (cor, deficiências…) ou por apresentarem diferenças de pensamento ou atitudes. Como afirma Kothe “a força da figura do centauro está na representação do anômalo, do inconfortante ao meio, do ser estranho que é perseguido e excluído, porque se constitui numa diversificação provavelmente inovadora.”
Os mitos, segundo Ullmann, por “serem narrativas sérias, de veracidade indubitável” seja o clássico ou revestido de novas cores são sistematicamente repetidos. E através dessa repetição (ritos) “revestem-se de cunho eterno” (Ullmann), estático e sem dinâmica, na medida em que não modifica a essência do acontecido.
E o novo que nos fala Scliar, é que as diferenças atuais assumem o caráter mitológico no momento em que os tratamos magicamente e, além disso, tomamos essas diferenças como predestinações divinas e eternas. Retiramos do indivíduo a possibilidade de vivenciar essa diferença. Justificamos a discriminação e marginalidade em que vivem os diferentes através desse mesmo mecanismo mitológico revestido com novas formas e cores.
Para sobreviver o mito encontra variadas maneiras para renovar-se. É nessa renovação que surgem mitos que aparentemente não nos parece com os mitos clássicos. E é esse o papel que nos cabe, desmistificar o mito. Se for função de um mito massificar um pensamento, uma idéia, como nos afirma Ullmann “dar uma coesão grupal”, já que os mitos, segundo o mesmo autor, “justificam, fundamentam, reforçam e codificam as crenças e práticas de uma sociedade. São, em outras palavras uma espécie de dogma para o mundo primitivo e civilizado.”
Nesse caso (centauro) a referência mitológica serve e é utilizada para mascarar os próprios efeitos de uma sociedade injusta, intolerante e dividida. Sociedade que condena os diferentes a marginalidade e ao desconforto, pois todo o sinal de diferença é encarado como a possibilidade de abalar as estruturas que o tornaram marginal. Assim ser diferente passa a ser realmente um perigo e até uma ameaça.
No momento em que transmitimos conhecimentos, transmitimos um tipo de moral. E nesse atual estágio da sociedade estamos divulgando um mito. Um mito arraigado de preconceitos, que leve o indivíduo a viver marginalizado das causas que o mesmo mito não revela.
Entendemos que nesse momento já significa uma anomalia o simples ato de viver. Existir já é pecado. Centauros representam o novo, o original. E a inovação não nos é permitida.
Scliar desvenda a utilização das forças mitológicas na referência a estruturas despóticas, como no exemplo clássico da Alemanha nazista. Mostra-nos que a revelação mitológica é revestida de caráter ideológico e político. O mito existe, também, para ajudar na preservação de uma determinada situação social fazendo com que as pessoas pensem ser “natural” uma determinada estrutura revelada através de atos aparentemente insanos.
Resta-nos dizer que o livro de Moacyr Scliar se faz urgente e necessário, pois é só com novas posturas que construiremos uma nova vida. Uma vida onde seja possível manter as diferenças. Onde as diferenças não sejam motivos para afastamentos. Onde as diferenças sejam apenas isso: diferenças.
Procuram-se Centauros.